Hoje é aniversário do meu pai. Cortei relações com ele há alguns anos, desde que entendi que o esforço que eu fazia para abstrair as barbaridades nas quais ele passou a acreditar e falar por aí eram demais para mim. Há quem apele aos laços sanguíneos, há quem me considere ingrata. Há quem respeite a minha decisão e não me encha o saco. Estou muito tranquila quanto a isso.
Reconheço que temos nossas semelhanças. Os traços do meu rosto, a disposição para pegar a estrada e se aventurar por aí.
Um dia eu e minha irmã fizemos o mapa astral dele e batemos o martelo: se minha mãe tivesse a mesma ideia na década de 80, ela provavelmente não teria casado e nós sequer existiríamos. Áries com ascendente e Lua em Sagitário, caso queira saber. Ótima pessoa, mas não espere qualquer compromisso com a realidade.
Nem é sobre meu pai este texto, ainda que este preâmbulo fosse necessário. E sim sobre algumas das mulheres com as quais ele teve relacionamentos longos.
A primeira: minha mãe. Eram muito jovens. Ela, a primogênita de uma família numerosa, pobre, de pouco estudo. Casaram-se em 1987. Em 1988, nasci. Em 1990, aos 25, já rolava um divórcio tumultuado e duas filhas pequenas - uma, recém-nascida. Não tenho lembranças desse período. O que recordo depois envolvem visitas ocasionais, discussões sobre pensão alimentícia e o apelido de “bunda mole” que ela gentilmente colocou nele.
Admiro muito minha mãe por ter dado conta (a rede de apoio que tivemos nem se chamava rede de apoio mas também foi fundamental). E mais ainda: a admiro por não ter deixado de viver, nem de se apaixonar, de amar, nem de ir para o Portugas ou o Companhia em algumas noites de final de semana.
Lembro que quando eu tinha uns 9 anos ela namorava um cara mais jovem e mentia a idade pra ele (não me mate por isso, mãe). No dia do aniversário dela, eu acabei dando com a língua nos dentes sem querer e deixei escapar que ela já tinha mais de 30. Nos anos 90 ter mais de 30 e namorar caras mais novos era no mínimo ousado.
Só casou de novo quando eu já tinha 15 anos, chocando a família ao levar um cara com o qual ela estava saindo há apenas algumas semanas para morar com a gente. Eu pessoalmente curtia horrores quando minha mãe chocava a família. É possível afirmar que fez isso algumas vezes.
No casamento, usou um vestido branco sem alças estilo princesa. Dançaram “A Velha Infância”, do Tribalistas, com parentes fofoqueiros fazendo um círculo em torno dos noivos. Foi uma bela festa. E sim, estão juntos até hoje.
Só me dei conta muito recentemente o quanto, minha mãe me ensinou sobre a liberdade de assumir meus desejos. A disposição para amar, mesmo diante de todas as feridas que a vida nos traz.
Na linha cronológica, a segunda ex. Ela tinha um crush no Freddie Mercury e nunca esqueci de um CD de Greatest Hits do Queen que ganhamos dela em algum momento. Com ela aprendi sobre um outro tipo de liberdade: a de não me prender às convenções sociais. Nunca a vi como uma espécie de vilã destruidora de lares. Acontece. Crazy little thing called love.
Ela não se prendia aos rígidos padrões estéticos da época e eu achava incrível ver uma mulher assim. Usava roupas fluidas, sem se preocupar com as tendências do momento, não noiava com peso (enquanto fiz minha primeira dieta aos 9 anos). Os cabelos rebeldes, quase sempre soltos, o rosto normalmente sem maquiagem. Tinha um humor afiado, chamava o nosso clã composto por madrasta, pai, irmã, irmã por parte de pai e enteada do meu pai de “família do joão cu-cu”. Ela dirigia! Era a única mulher do meu núcleo familiar mais próximo a fazer isso.
O casamento deles acabou em meados dos anos 2000. Perdemos o convívio, mas já nos reencontramos algumas vezes e sempre percebo muito carinho, respeito e admiração entre nós.
A terceira ex, por fim. A leonina mais leonina que já conheci: os cabelos crespos loiríssimos, uma juba. Muitas joias douradas, uma pintura enorme de si mesma pendurada na sala de casa. Uma perua sindicalista. Falava o que pensava, não tinha meias palavras. Era uma mulher feroz, com olhos azuis enormes. No enterro da minha vó ela atirou um cigarro na tumba a nosso pedido.
Com ela, aprendi sobre outra camada de liberdade: a financeira. Tinha uma vida confortável, se permitia alguns luxos. E não dependia de homem nenhum para isto. Ficaram casados alguns anos. Soube por meio das minhas irmãs que eles até reataram em algum momento, e eu honestamente acredito que ele não merecia tanto.
Hoje, no dia do aniversário do meu pai, eu faço um brinde a elas. Vocês sempre foram a parte mais legal dele.
xxxxx
Leia (mas não se estiver sofrendo): A Trégua, Mario Benedetti
Ouça: essa playlist para se despedir do verão
Veja: Anatomia de uma queda
Seus textos me deixam tão inspirada! Aquela coceirinha na alma de vontade de escrever 💖
Que maravilha!! Adorei. Interessante demais ver certas situações por outros ângulos.
E concordo que se deparando com um mapa desses a melhor coisa a se fazer é pular fora.
Beijos